Resenha de A etiologia da histeria, (1896) de Freud
- César Assis
- 3 de jun. de 2019
- 7 min de leitura
Atualizado: 7 de ago. de 2019
A etiologia da histeria é fruto de uma conferência proferida por Freud para a Verein für Psychiatrie und Neurologie, em 1896. Conforme mencionado em nota pelo editor inglês da Coleção Standard, Freud relatou, em carta para Wilhelm Fliess, ter tido uma recepção gélida do público. Kraff-Ebing, que estava na presidência do evento, afirmou que sua conferência soava como um conto de fada científico.

Esse texto de Freud pode ser visto como intermediário em sua análise da etiologia da histeria. Ele ainda explicita as influências herdadas de Charcot e Josef Breuer para a compreensão do fenômeno — o primeiro concebe a histeria como ligada à hereditariedade, o segundo como vinculada a um traço mnêmico –, mas Freud introduz a experiência sexual infantil como decisiva na causa da histeria. Vale notar que nesse momento o autor substitui as explicações neurológicas por psicológicas, e concebe a sexualidade infantil como uma experiência passiva, dependente da figura de um adulto sedutor. Além disso, nesse momento Freud ainda não tinha formulado o local da fantasia e do desejo na sexualidade infantil e sua relação com a neurose, tese posterior.
Nesta conferência, Freud também apresenta brevemente o seu método de investigação analítica, que por meio de associação livre na fala leva o paciente até a cena traumática que causou a histeria. Ele compara o seu método a uma exploração arqueológica. Assim como nesta, por meio de escavações, ruínas, restos de parede, fragmentos de colunas, lápides, inscrições, entre outros elementos, visa-se reconstruir uma cidade ou vilarejo do passado, em uma terapia analítica faz-se algo semelhante, busca-se a origem da histeria por meio de pequenos sinais.
O argumento de Freud segue próximo aos de Breuer, visto que os sintomas da histeria são compreendidos como testemunhos da história de origem da doença, como afirma Freud, eles “são determinados por certas experiências do paciente que atuaram de modo traumático e que são reproduzidas em sua vida psíquica sob a forma de símbolos mnêmicos” ([1896] 2006, p. 191). Tais símbolos mnêmicos são lembranças inconscientes que possuem um caráter patogênico. Para Breuer e Freud a reprodução da cena traumática levaria a uma correção do curso psíquico dos acontecimentos.
Contudo, Freud salienta que a atribuição de relação entre um sintoma histérico e uma cena traumática somente auxilia a compreensão quando a cena atende duas condições: “quando possui a pertinente adequação para funcionar como determinante e quando tem, reconhecidamente, a necessária força traumática” (idem, p. 191). Contudo, com frequência i) a cena é inadequada para determinar o sintoma, uma vez que não há relação entre ela e o sintoma; ii) embora a experiência tenha relação com sintoma, ela se revela um impressão inócua, incapaz de produzir o sintoma; iii) ou então a cena traumática é inócua e sem relação com o caráter do sintoma histérico.
O analista deve fazer o caminho de volta até a cena traumática, que funciona como um elo em uma cadeia de associações que leva a outras cenas. O processo analítico precisa levar a um caminho em que se retrocede até uma cena satisfatória tanto terapêutica como analiticamente. Afirma Freud:
“A cadeia de associações tem sempre mais que dois elos, e as cenas traumáticas não formam uma corrente simples, como um fio de pérolas, mas antes se ramificam e se interligam como árvores genealógicas, de modo que, a cada nova experiência, duas ou mais experiência anteriores entram em operação como lembranças” (idem, p. 194).
Por meio do trabalho analítico e do estudo dessa cadeia de lembranças, conclui Freud:
“nenhum sintoma histérico pode emergir de uma única experiência real, mas que, em todos os casos, a lembrança de experiências mais antigas despertadas em associação com ela atua na causação do sintoma” (idem, p. 194).
Para dimensionar a complexidade das cadeias associativas, Freud explicita que:
“A princípio, as cadeias de lembranças percorrem cursos regressivos independentes, mas, como já disse, ramificam-se. A partir de uma mesma cena, duas ou mais lembranças são atingidas ao mesmo tempo e destas, por sua vez, procedem cadeias laterais cujos elos individuais podem mais uma vez estar associativamente ligados a elos pertencentes à cadeia principal. Na verdade, a comparação com a árvore genealógica de uma família cujos membros também se casassem entre si não é nada má. Outras complicações na vinculação das cadeias emergem da circunstância de que uma única cena pode ser evocada várias vezes na mesma cadeia, apresentando assim múltiplas relações com uma cena posterior e exibindo com ela tato uma conexão direta quanto uma conexão estabelecida através de laços intermediários” (idem, p. 195).
Este é o momento da análise que podem emergir pontos nodais, uma palavra ou uma experiência podem ser um ponto comum no qual, e a partir do qual, outras experiências convergem ou divergem.
A descoberta mais importante que Freud afirma ter chegado é o fato de que independentemente de qual sintoma se tenha partido, ou de qual seja o caso, uma análise sistematicamente conduzida leva infalivelmente ao campo da experiência sexual. De seus 18 casos de histeria analisados, todos revelaram uma cena traumática de experiência sexual no período da puberdade.
Freud define tais sujeitos desse modo:
“Os histéricos são criaturas peculiarmente constituídas (predisposição hereditária ou atrofia degenerativa) nas quais um retraimento da sexualidade, que normalmente ocorre na puberdade, é elevado a um grau patológico e é permanentemente mantido; são, portanto, por assim dizer, pessoas psiquicamente inaptas para atender às exigências da sexualidade” (idem, p. 198).
Nesse texto Freud parte de uma explicação que preserva o papel da hereditariedade (como era para a escola de Charcot) e afirma que seria a experiência sexual na tenra infância que explicaria a histeria. Essa experiência teria um papel durador, como traço mnêmico. Os sintomas histéricos emergiriam a partir da cooperação de lembranças inconscientes.
Num primeiro momento das análises consideradas, são as experiências sexuais da puberdade que emergem como causadoras da histeria. Mas, por meio de associações de ideias do paciente e retrocedendo em sua história pessoal, chega-se a experiências infantis de caráter sexual, mais uniforme do que as experiências da puberdade descritas anteriormente.
Assim, Freud se aprofunda na questão controversa que relaciona a histeria à ocorrência de experiências sexuais na infância, expondo a tese central de sua conferência:
“na base de todos os casos de histeria, há uma ou mais ocorrência de experiência sexual prematura, ocorrências estas que pertencem aos primeiros anos da infância, mas que podem ser reproduzidas através do trabalho da psicanálise a despeito das décadas decorridas no intervalo” (idem, p. 200).
Na sequência, ele argumenta contra possíveis objeções. Primeiramente ele defende a explicação psicológica para a histeria. Com relação a aqueles que não partilham dessa visão, Freud afirma que nada pode fazer, pois eles não partem de pressupostos comuns.
Em segundo lugar, quanto à dúvida da autenticidade dos relatos dos pacientes, Freud afirma que não é capaz de produzir o relato que desejaria, e que a cena emerge na fala do paciente com muito sofrimento e é reproduzido com muita relutância. Além disso, a autenticidade do relato é verificada pelo seu efeito terapêutico, pois a sua emergência pode levar ao fim do sintoma, bem com ele representa uma peça que falta no quadro analítico do sujeito. Freud também argumenta que a experiência sexual infantil na infância é bem menos raro do que se imagina.
Em relação aos seus 18 pacientes, ele os divide em três grupos. Primeiramente ele menciona aqueles que foram atacados, isto é, submetidos a práticas sexuais sem consentimento, o que lhe causou um susto. Em segundo lugar, ele menciona a experiência sexual que chamou de relação amorosa com cuidador, isto é, pessoas próximas e conhecidas da criança que durante as práticas de cuidado a invadiram. Em terceiro lugar, ele menciona relações sexuais infantis propriamente ditas, isto é, relações entre crianças, que em seu entendimento, parte de uma criança que já aprendeu anteriormente tal prática com um abusador. Assim, é possível afirmar que somente posteriormente Freud irá conceber a sexualidade infantil como não necessariamente dependente de uma relação sexual anterior com um adulto sedutor.
De acordo com Freud, todas as pessoas que se tornaram histéricas vivenciaram cenas dessa ordem, dai a sua importância etiológica, contudo, nem todos que vivenciaram estas cenas se tornaram histéricos. Tal como ocorre com o bacilo da tuberculose, nem todos que entram em contato com ele se tornam tuberculosos, mas ele é condição da tuberculose.
Em consonância com o que é característico das neuroses, o autor propôs que “a eclosão da histeria pode ser quase inevitavelmente atribuída a um conflito psíquico que emerge quando uma representação incompatível detona uma defesa por parte do ego e solicita um recalcamento” (idem, p. 206). Explicitando melhor o papel da defesa, afirma que
“a defesa cumpre seu propósito de arremessar a representação incompatível para fora da consciência quando há cenas sexuais infantis presentes no sujeito (até então normal) sob a forma de lembranças inconscientes, e quando a representação a ser recalcada pode vincular-se em termos lógicos e associativos com uma experiência infantil desse tipo”.
Assim, não basta haver experiências sexuais infantis, uma precondição psicológica se impõe, elas precisam existir como lembranças inconscientes. É na medida em que sejam inconscientes que podem manter os sintomas histéricos.
Freud sintetiza:
“para a formação de um sintoma histérico, deve haver um esforço defensivo contra uma representação aflitiva; de que essa representação deve apresentar uma conexão lógica ou associativa com uma lembrança inconsciente através de alguns ou muitos elos intermediários, que também permanecem inconscientes no momento; de que essa lembrança inconsciente deve ter um conteúdo sexual; e de que esse conteúdo deve ser uma experiência ocorrida durante certo período da vida” (idem, p. 208–209).
Outro argumento importante é que a reação dos histéricos somente aparentemente é exagerada. Em verdade, ela é a resposta exata a um acúmulo de estímulos. Assim, “nos pacientes histéricos, todas as suas experiências — às quais eles já reagiram com tanta frequência e, além disso, com tanta violência — retiveram seu poder efetivo; é como se essas pessoas fossem incapazes de se desfazerem de seus estímulos psíquicos” (p. 213). Antigas experiências exercem sua influência como lembranças inconscientes.
Freud termina a sua conferência clamando para que seu trabalho não seja visto como fruto de especulações inúteis, visto que cada caso estudado diz respeito a cem horas ou mais de análise individual laboriosa. Afirma também que ainda está em processo o desenvolvimento desse novo método que dá acesso ao que é inadmissível à consciência, processos de pensamentos que permanecem inconscientes.
Referência bibliográfica
FREUD, Sigmund. A etiologia da histeria (1896). In: FREUD, Sigmund. Primeiras publicações psicanalíticas (1893–1899). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume III. Rio de Janeiro: Imago, 2006. 187–215p.
Data de Publicação: Junho/2019
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